14 de maio de 2005

Como perder pontos de QI (sem recorrer a uma lobotomia)

O mundo moderno é fascinante. Aliás, ainda mais fascinante do que alguns previram há pouco mais de 10 anos. Poucos livros de ficção científica escritos até o fim da década de 80 apresentam algum elemento que supere o atual "estado da arte" do mundo moderno em diversos aspectos. Eu sou completamente adepto da tecnologia. Em minha mala de viagem, é normal ter mais brinquedinhos eletrônicos do que roupas. Mas da mesma maneira que percebo que toda a comodidade abre espaço para se fazer muito mais coisa em muito menos tempo (tenho dúvida se isso é mesmo uma meta a se buscar...), ela também induz à acomodação. Ao ócio não-criativo, uma falsa sensação de conforto, convívio social e "sabedoria". A seguir, algumas dicas de como se tornar um ser humano menos inteligente, e ainda liberar alguns 'gigabytes' de espaço na sua cabeça (que já não anda tão ocupada assim, com o advento dos pendrives e do powerpoint). Trata-se de um curso rápido, e os efeitos são sentidos ainda na segunda semana!

1 - "Google everything". Sim, porque "googlar" virou um verbo, e está até ameaçando entrar em alguns dicionários lá fora (e como sabemos, tudo que entra no dicionário, ou no mínimo na boca do povo, por lá entra aqui também. eu deleto, tu deletas, eles deletam. Eu blogo, tu blogas, eles comentam). Googlar tornou-se uma parte tão importante da vida de muitos que já virou até assunto de pesquisas aprofundadas sobre a necessidade de "conhecimento" na mente humana. Se o conhecimento é coletivo, para que manter informações na sua própria cabeça? Uma simples pesquisa por "what is esternocleidomastóide" em um site com um logo engraçado que muda diariamente (gosto especialmente das datas comemorativas e épocas de jogos olímpicos) transforma qualquer um em um médico especialista (em que mesmo? Tenho que pesquisar melhor...) em segundos. Não sabe de algo? google knows. E ele mostra para você em segundos...

2 - Esqueça os aniversários de seus amigos. Com tanta ferramenta por aí pra lembrá-lo, pra que decorar alguma coisa? Um adendo a esta regra: esqueça os antiquados cartões de "feliz aniversário". Deixe um "scrap" no Orkut de seu amigo (no bom sentido, claro) e espere ele responder (reply to all), preferencialmente em diversas línguas. Espere também receber diversas cópias do "obrigado/thank you/danke Sie), mas não leve seu amigo a mal. São os males de teses de doutorado de cientistas com nome esquisito usadas repentinamente como sistemas de comunicação de massa. Grab a donut!

3 - Agenda de Telefones? Compre um palmtop. Ou um smartphone. Ou um iPod! Qualquer coisa com milhões de kbytes de informação que permita você anotar até seu próprio número. E se você acha que demora para procurar informações na "coisinha", faça como eu: anote seu próprio número em uma etiquetinha e cole atrás do seu "gadget". Assim você não esquece ele...

4 - Telefone é coisa do passado. Skype é coisa do futuro, quando as pessoas não se sentirão mais ridículas falando com um computador (eu até hoje fico constrangido falando até com secretária eletrônica...). Com tantos sistemas de Instant Messaging (leia-se MSN) por aí, por que diabos você precisa gastar sua voz? Só não se surpreenda se pouco a pouco você perder a capacidade de manter um diálogo com uma só pessoa, ou se sentir falta do botão de enviar emoticons animados quando estiver em uma mesa de bar. Caso ache que não é suficiente, ixxkreva axxxim, ou pelo menos , a menos deixe de usar acentos em prol de 'ehs', 'tahs' e 'sohs'. E torça para que você não precise redigir nada em absoluto para viver. Vicia, destrói o pequeno dicionário que todos nem na chamada "memória". E quando seu chefe vier perguntar o que diabos você quis dizer com "pq eu axo q eh axim" naquele seu relatório anual de atividades, coloque a culpa no clipe de papel do Word, que melecou seu texto todo.

5 - SMS. Aliás, "mnde mtas msgs!!!!". Na busca pela economia de centavos aqui e centavos ali, mande dezenas, milhares de SMS por mês. Abrevie as palavras até o limite do intelingível, e sinta-se economizando. Afinal, se 50 horas de ligação por mês custariam seus 30 reais (incluindo impostos), posso mandar umas 100 mensagens e transmitir o conceito de todas as conversas que teria, e até mais! Ops, chegou a fatura. O QUE??? EU MANDEI 540 MENSAGENS??? OH NÃO!!!!! Mais que uma descaracterização da língua (que como o sexo, enferruja se não usar), o SMS (como o Instant Messaging, vide tópico 4) torna o contato humano mais distante, frio e pontual. Tudo que o telegrama tentou ser e não conseguiu! Já é lugar comum: amigos sentados na mesa do bar, todos de cabeça baixa, teclando mensagens. Pessoas no cinema, de cabeça baixa, teclando e perdendo todo o contexto do filme. Pessoas no trânsito, de cabeça baixa, teclando e batendo o carro. No mínimo, a próxima geração vai sofrer de um baita torcicolo...

Em tempo, SMS na Inglaterra virou verbo. Graças à riqueza gramatical de nossa língua, espero que não aconteça o mesmo aqui. "I'll SMS it to you". E no mundo todo, virou um entrave para a vida social (até mais do que o seu originador, o famigerado celular).

6 - Use câmeras digitais. Aliás, use tudo digital. "Analógico" é antiquado, velho, pesado, caro. Analógico tem que revelar. Analógico não deixa eu apagar e fazer novamente. Analógico remete a passado. Não se aplica somente a câmeras: pra que perder tempo vendo um filme no cinema (que é digital, mas pelo menos o "ambiente" é "analógico" em algum sentido...), se você pode baixar, verificar se as legendas estão alinhadas, gravar em um CD e... arquivar? Afinal, essa é a grande sacada do digital: acumular informações e contextos que nunca serão usadas. Vide a sua grande coleção de músicas mp3 nunca ouvidas. Seus filmes nunca assistidos. Seus e-books nunca "abertos" (nem no sentido digital da palavra). Suas fotos nunca reveladas ("impressas"). Toda a cultura nunca assimilada.

7 - Errou? control+z. Se a vida é um livro que se escreve sem borracha, o computador veio para provar o contrário. Refaça tudo infinitas vezes até chegar à perfeição (ou até enjoar e deixar como está). Errou? ctrl+z. Errou? ctrl+z. Errou? ctrl+z. O problema é que o 'conceito' do control+z (quando teremos um filósofo moderno escrevendo sobre isso???) parece se aplicar também aos relacionamentos, empregos, bens de consumo (especialíssimamente em meu caso!!!) e tudo mais. Pra que planejar, se você pode simplesmente tentar, e... Ops! Não dá pra voltar atrás??? Não, não dá.

8 - Jogue vídeo-games. Tá certo que estimula isso e aquilo outro (e induz tiques nervosos e piscares de olhos compulsivos na maioria), mas também ajuda a esquecer regras básicas de convivência. Você frequenta auto-escola e dirige seu carrinho por anos a fio, até que vicia naquele certo jogo de corrida de carro e... adeus, seta. Adeus, andar na faixa. Joga pela janela todas as regras de trânsito que aprendeu com tanto zêlo. Desaprende, porque errado é mais gostoso (e como quem joga passa mais tempo dirigindo no joguinho do que na vida real, acaba assimilando mesmo sem querer). Quando vão inventar o carro que liga a seta sozinho quando você pensa em fazer a curva???

9 - Seja um multilíngue. Trata-se de um adendo rápido ao item 1: se você não fala chinês, coreano, dialeto basco, ou mesmo inglês (o latim dos tempos modernos), não se apavore. Tem sempre uma ferramenta de idiomas pronta para ajudar. Agora você pode colocar no currículo: fluente em inglês, francês, espanhol (mi espanol es fueda!) e RUSSO, pra dar aquele diferencial. Cuidado somente com as entrevistas...

10 - Relaxe. Se tem algo que você ainda se esforça para fazer, tenha certeza: alguém está bolando um meio de fazer por você. Se até seu player de mp3 já "adivinha" quais são as suas músicas preferidas e seu site de compras preferido indica "o que você deve ler a seguir", resta sentar em um sofá confortável a aproveitar o melhor que a era da informação tem a oferecer. E pra que serve esse negócio com gosto de cera de ouvido que você tem dentro da cabeça? Bom... ainda estou tentando descobrir pra que serve o meu...

Agora é torcer para não faltar energia...

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